quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O LEGADO DE MACHADO DE ASSIS

A obra de Machado de Assis nos transmite um legado de reflexões sobre uma sociedade carioca em profunda transformação na segunda metade do século XIX. Esse legado sinaliza a grande capacidade do escritor em unir a observação crítica às vozes de saberes filosóficos, teológicos, literários, entre outros. Machado articula o vigor do conhecimento erudito a uma perspicaz capacidade de reflexão sobre os movimentos humanos externos e internos: leitor dos clássicos e observador social, o autor torna seus poemas, crônicas e narrativas uma fonte de experimentação da escrita e do pensamento, fato esse que revitaliza o interesse de Machado a nosso tempo tão necessitado de novas perspectivas e indagações.


De origem pobre e escrava, Machado poderia ser apenas mais um no cruel jogo das rígidas posições sociais de sua época. O desafio a um esquema previsível de exclusão permitiu ao autor uma travessia de inconformidade e análise das artimanhas políticas e morais de uma sociedade incapaz de uma auto-análise construtiva. Suas crônicas, por exemplo, mais do que um retrato de época, focalizam, com jocosidade e ironia, as contradições de uma cidade que mistura a alegria dos blocos carnavalescos e o abandono à sorte dos escravos libertados. Já nos romances e contos, a elucidação das contradições sociais estão acompanhadas de um olhar mais detalhado sobre os movimentos internos do indivíduo. Dúvidas, sonhos, teorias, fracassos e alegrias surgem em meio a grupos que supervalorizam o costume e a aparência. Alguns personagens de Machado revelam sujeitos cujos atos e pensamentos nem sempre enquadram na moldura do gregarismo alienado. Esses indivíduos (loucos, visionários, ciumentos, golpistas) surgem na diversidade do corpo social e tornam manifesto o mal-estar tácito entre indivíduo e coletividade.

Esse olhar crítico em direção às contradições humanas aparece em grande medida ancorado em saberes eruditos, conforme demonstra a intertextualidade de sua obra. Não se trata de uma mera repetição de grandes pensadores. Machado consegue um diálogo que promove a criatividade estética e reflexiva. Seja nas releitura de Lawrence Sterne, Dante Alighieri ou da Bíblia, o escritor brasileiro convoca esses pensamentos à sua maneira. Da eventual distância entre passado e presente, erudição e empirismo, Machado constrói uma ponte que documenta as atitudes de uma época que naturalizava o descaso e a rigidez hipócrita dos costumes e das demarcações hierárquicas. Suas análises atuavam como uma ferramenta de exposição e denúncia, aliando saberes e construindo novas formas de pensar.


Esse espírito crítico e erudito marca a importância de Machado de Assis um século depois de sua morte. Sua herança é uma atitude que convida homens e mulheres de hoje a essa observação cuidadosa da cidade e de seus movimentos, da sociedade e da relação do indivíduo com esta. Nos tempos atuais, em que o prestígio do saber sucumbe aos laços da mediocridade e da alienação, a escrita do pensador Machado instaura a renovação da necessidade de reflexão. Isto porque o Rio de Janeiro ainda convive com suas mazelas. Em meio à correria do grande centro, adultos e crianças condenados a sobreviverem como restos invisíveis da sujeira urbana e humana; escravos do lucro e do ritmo fast-food, os apressados transeuntes, sem tempo de ler e pensar reflexivamente, ignoram a si mesmos e aos outros. Vive-se hoje em uma cidade abandonada pelo poder público e ignorada por grande parte dos seus: subúrbios entregues ao esquecimento, um cais do porto (entrada marítima e turística) sujo e mal cheiroso, um centro com praças mal cuidadas e ruas (de placas novas) com calçadas antigas e esburacadas. Como se pode notar, talvez, ainda mais do que antes, a herança de Machado de Assis é indispensável a este século de velocidade e desinteresse.


Portanto, discutir a importância de Machado de Assis hoje é refletir sobre a capacidade de superação do ser humano em prol da conquista do pensamento crítico e do espaço social. Como mostra o exemplo do escritor, as barreiras sociais não são definitivas para a reclusão do vigor reflexivo. Sua impertinência em relação às convenções naturalizadas e sua entrega ao aprendizado e à experimentação racional e estética foram combustíveis de sua escrita desafiadora. Machado une esse exame atento das condições humanas ao conhecimento conceitual e histórico, a fim de trazer à baila a eficácia do saber e da proximidade deste com o indivíduo. Um século depois de sua morte, Machado de Assis ressurge como um pensador capaz de ultrapassar o seu tempo e chamar a atenção de todos que hoje em dia estão indiferentes à desordem em meio a aparentes conjunturas individuais e sociais.

Editorial:
Prof. Hudson dos Santos Barros – Português / literatura

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